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A vida tenta seguir seu fluxo na região afetada pelo desabamento das pontes em Careiro

A vida tenta seguir seu fluxo na região afetada pelo desabamento das pontes em Careiro

Comunicação OBR-319
Foto: Eric Cezne/Cedida

Por volta das 15h do dia 08 de outubro, começou a circular no WhatsApp vídeos de uma ponte que estava prestes a cair na BR-319. Quem recebia as mensagens não acreditava, e perguntas do tipo “é outra ponte ou mesma que já desabou?” ilustravam a incredulidade com a situação. E sim, era uma outra ponte que estava prestes a desabar na BR-319, a menos 2 km da primeira que desabou dia 28 de setembro e matou, pelo menos, quatro pessoas. No início da noite foi a vez da ponte sobre o rio Autaz Mirim desabar. A estrutura se desagregou e ruiu lentamente até que a parte do meio da ponte caísse no rio. Não houve vítimas fatais, mas, a situação provocada pela queda das duas pontes afetou mais de 140 mil pessoas nos municípios de Careiro da Várzea, Autazes, Careiro e Manaquiri que dependem destes trechos da estrada para sobreviver.

“Os mercadinhos da cidade estão ficando desabastecidos, falta farelo para ração, leite em caixa e outros produtos industrializados”, contou a agricultora familiar Nilcinha de Jesus Amaral Pereira. Ela mora com a família no Lago do Mamori, uma das maiores comunidades da região e onde vivem muitos produtores orgânicos. “Fome nós não passamos, mas precisamos de bens que não produzimos. Além disso, o frete para escoamento da nossa produção está super caro”, explicou. Nilcinha destaca que a solidariedade tem sido a moeda de troca mais valiosa entre os moradores locais. “Eu troco o que tenho pelo que não tenho com meus vizinhos, é assim que a gente faz. Aqui ninguém passa necessidade”, ressaltou. “Mas, vez ou outra, precisamos de gás, combustível e alimentos que não produzimos, como a mistura para a ração dos bichos, pois é bom diversificar o que eles comem”, acrescentou.

Mas nem todos dispõem de uma rede de apoio articulada para manter a engrenagem do cotidiano funcionando diante desta situação. “Alguns produtos a comunidade ainda consegue consumir, mas se a quantidade for elevada a comunidade não vai conseguir consumir tudo, né? É a questão do abacaxi e outros inúmeros produtos que produzimos neste circuito até para abastecer o comércio de Manaus”, avaliou a assistente social e e liderança do coletivo Divas da Floresta Edilise Costa, moradora da sede do município de Careiro. Segundo ela, além da queda das pontes os produtores da região ainda estão enfrentando uma seca intensa, que dificulta o deslocamento das comunidades. “Infelizmente, a governança local é baixa e não está preparada para um sinistro como esse. Há um despreparo por parte das autoridades, inclusive dos servidores públicos, para ofertar um serviço emergencial. Hoje, o Idam [Instituto de Desenvolvimento Agropecuário e Florestal Sustentável do Estado do Amazonas] não sabe sequer quantas famílias tiram o sustento da agricultura e precisam de ajuda. Isso faz com que todo o município sofra o impacto da situação”, avaliou. “Tem gente que tem dinheiro, mas não tem o gás de cozinha para comprar. Tem gente que depende de água potável envasada, mas não tem onde comprar garrafão, porque está em falta”, relatou Edilise.

Jorge Luiz dos Santos, presidente da Associação de Produtores Orgânicos Renascer de Careiro da Várzea, relata que ele e outros produtores tiveram perdas significativas, principalmente de abacaxi. A queda das pontes não poderia ter acontecido em pior momento: a produção estava pronta pra colheita. “Abacaxi, pupunha, couve, cheiro verde, cebolinha, chicória, cariru, jambu, toda essa produção ficou sem escoamento. A macaxeira que já estava no ponto de colher passou da época, perdemos muito, muito, muito mesmo. Fora hortaliças e outras coisas”, relatou. Ele diz que após o decreto de emergência no município e recursos enviados de Brasília, foi possível vender três caminhões de produtos, como cará, abacaxi e hortaliças para a Agência de Desenvolvimento Sustentável do Amazonas (ADS). “Foi uma inciativa muito boa agora, mas tivemos perdas sim e perdas muito grandes, que não sabemos como vai ficar, se alguém vai ressarcir a gente, porque alguém é responsável por isso. A ponte desabou, ninguém pediu pra isso acontecer, mas nós não podemos perder por isso”, avaliou Jorge.

“Nós, agricultores, produzimos com muito respeito alimentos orgânicos. Só Deus sabe o trabalho que dá produzir dessa forma, para levar um alimento de qualidade à mesa do consumidor. Temos muito respeito por essa alimentação. Infelizmente, tivemos essa perda e me coloco na posição de produtor e líder da associação, não posso cruzar meus braços e dizer que tudo saiu às mil maravilhas. Hoje, temos ajuda da ADS, que são nossos parceiros, que compraram muito, o governo sempre priorizou o agricultor familiar, mas tivemos prejuízos”, contou com pesar Jorge.

As duas pontes desabaram em um intervalo de 10 dias: no dia 28 de setembro, a ponte sobre o rio Curuçá caiu matando quatro pessoas, deixando uma desaparecida e ferindo 14; no dia 08 de outubro, foi a ponte sobre o rio Autaz Mirim que desabou poucas horas após ser interditada pela Polícia Rodoviária Federal (PRF).

Soluções emergenciais

Para minimizar o impacto dos desabamentos, o governo do Amazonas e o Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit) optaram pela instalação de estruturas improvisadas para restabelecer o tráfego nos locais atingidos. Elas serão mantidas enquanto durarem as obras de recuperação das pontes, que têm previsão de um ano. No ponto do rio Curuçá, uma balsa, sob responsabilidade da Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq), fará a travessia no rio. Já no caso do rio Autaz Mirim, a decisão foi mais radical: optaram por aterrar um trecho do rio e fazer uma passagem seca de mais ou menos 30 metros. A medida foi tomada, até onde se sabe, sem avaliação prévia do possível impacto ambiental da obra. “É preocupante que uma medida como essa seja adotada sem a avaliação e aprovação de órgãos licenciadores. Precisamos de uma solução emergencial, mas ela tem que ser pensada com responsabilidade, para evitar que gere novos problemas para a região”, alertou o diretor da WCS Brasil, Carlos Durigan.

“Uma obra, mesmo que emergencial, se for mal feita, pode causar ainda mais problemas. Estamos em um ano de potencial continuidade do fenômeno La Niña, que tem influenciado o aumento de chuvas na região, e isso pode provocar novos problemas se considerarmos que os níveis dos rios podem começar a subir logo e comprometer o aterro realizado, e mesmo outros setores da estrada“, continuou Durigan. “De acordo com dados históricos da CPRM [órgão que monitora o nível dos rios], em condições normais, o rio ali deve baixar mais um metro, mas vai subir mais uns dois, pelo menos nos próximos meses, se as chuvas realmente aumentarem. Questões importantes precisam ser levantadas e respondidas: como este aterramento está sendo feito? Nesta obra, está sendo considerada a previsão de cheia? A restauração da ponte vai acontecer, e após isso, como o aterro será desativado? Ali, no fluxo das águas, também há movimentação de peixes, é passagem deles, isso está sendo considerado? E como serão mitigados impactos como este?”, indaga Durigan.

A preocupação do diretor da WCS Brasil tem fundamento. O pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), William Ernest Magnusson, em 2019, alertou ao Ministério Público Federal (MPF) sobre a incompatibilidade de obras previstas para a recuperação da rodovia e as características geográficas locais. “Em 2021, publicamos um artigo que previu os desastres com as pontes. As estruturas caíram na época da seca, quando o trânsito aumentou, mas é possível ver nas imagens divulgadas que a água tinha cavado em volta dos suportes das pontes no período chuvoso, de subida das águas, quando o aterramento de Áreas de Proteção Permanente [APPs], na cabeceira das pontes, direcionou toda a força da água para as colunas que apoiam as estruturas. Não é o pulso do rio que é o problema, o problema é o aterramento dos APPs, com rampas de acesso em vez de pontes atravessando toda a área”, explicou Magnusson. Segundo o pesquisador, o resumo do artigo em português foi entregue ao Dnit na audiência pública de setembro de 2021.

A terraplanagem ou aterramento de APP é proibido por lei e configura o crime de acordo com Artigo 63 da Lei nº 9.605 /1998, de crimes ambientais. Essas áreas devem ser conservadas para a proteção de solos e, principalmente, as matas ciliares, porque evitam assoreamentos e mudanças negativas nos rios. “A construção de estradas na Amazônia geralmente é sinônimo de terraplenagem, mas isto não está de acordo com as melhores práticas internacionais, tampouco com as leis de proteção do meio ambiente. A proposta para revitalização da BR-319 envolve a recuperação ou reconstrução de bueiros e pontes de curto alcance. Mas essas construções implicam no aterramento de APPs, associadas a rios e igarapés, o que pode causar diversos problemas, desde estruturais até de impacto na biodiversidade local”, disse Magnusson.

“Exemplo do efeito de não respeitar as APPs em volta dos cursos d’água que atravessam a BR-319 é o desabamento de trechos da pista pavimentada, como vemos durante todo o ano na imprensa. O rio enche todos os anos, o que provoca a infiltração de água no solo. Quando o rio baixa, e ocorre a exfiltração de água no solo, existe o risco desta terra desagregar e levar ao colapso do solo, ao desabamento do que foi aterrado, terraplanado, como acontece com trechos da estrada. Ainda mais em estradas de planícies baixas, como é o caso da BR-319”, destaca Magnusson.

Para Carlos Durigan, a BR-319 precisa de um serviço permanente de manutenção e monitoramento. “Precisamos saber com exatidão quantos quilômetros da BR-319 são sobre aterros, pois já sabemos que a estrada corta uma extensa região de paisagens aquáticas e áreas de inundação, a região próxima das comunidades da RDS Igapó-Açu, por exemplo, possui uma extensa área de igapós. A rodovia é um aterro imenso entre dois grandes rios e cercada por áreas alagáveis. Há pontos sujeitos a deslizamentos e rupturas frequentes da área pavimentada. Isso tudo deveria ser levado em conta na busca de soluções, daí a necessidade de se constituir um núcleo de gestão e monitoramento permanente para discutir questões como estas e buscar as melhores soluções, antes mesmo de tragédias acontecerem, e não uma gestão atrapalhada e que atua sempre com soluções improvisadas”, acrescentou Carlos Durigan.

Reconstrução da BR-319 tem que ser levada a sério

O engenheiro civil Fernando Catunda, atual coordenador do Grupo de Trabalho da BR-319 (GT BR-319) do Conselho Regional de Arquitetura, Engenharia e Urbanismo do Amazonas (Crea-AM), avalia que uma obra como a da BR-319 precisa de projetos adequados à realidade amazônica. “Temos cheia, temos seca, a estrada sofre. Precisa de alteamento, sistema de drenagem, adequados a isso”, pontuou. Além disso, ele destaca que as obras emergenciais e reparos na rodovia precisam estar de acordo com o atual contexto do Amazonas, ainda que sejam realizadas em trechos sem estudos ambientais, como é o caso do Segmento A. “A BR-319 foi projetada para uma realidade que não existe mais, hoje, por exemplo, o peso das cargas transportadas por ela quadruplicou”, disse Fernando Catunda.

O engenheiro também opina que a BR-319, por ser uma das poucas ligações terrestres do Amazonas com outros estados do Brasil, deveria ser prioridade do governo federal. “O Dnit precisa olhar para a nossa rodovia com seriedade, fazer um trabalho de qualidade”, defendeu. “O que é feito hoje na BR-319 é um crime contra os brasileiros, amazonenses, que vivem aqui, é discriminação”, acrescenta se referindo à qualidade das obras e à falta de soluções definitivas para problemas que se repetem.

Para Fernando Catunda, os estudos ambientais são importantes para obra e devem ser realizados com seriedade, uma vez que seus resultados apontam o melhor caminho para assegurar a qualidade das ações. No entanto, se realizados da maneira errada, levam a atrasos e provocam prejuízos à rodovia. “A BR-319, por anos, foi marginalizada, a meu ver. Ignorada pelos órgãos públicos, principalmente o Dnit. E tem a questão ambiental, que é muito forte e que, de certa forma, prejudicou o desenvolvimento, a melhoria, a ampliação e, inclusive, obras de recuperação da estrada. Isso foi um dano irreparável”, avaliou Catunda. “Tem que resolver a questão ambiental sem agredir os povos que vivem na BR-319, as populações indígenas e o meio ambiente. Precisamos de soluções para impactos ambientais condizentes com a estrutura que deve ser feita. Já tivemos diversos problemas com licenças, porque o que deveria ter sido feito não o foi, e isso atrapalha o desenvolvimento da obra”.

O coordenador do GT BR-319 também chama a atenção para medidas que podem evitar tragédias como as que aconteceram com a queda das pontes. “O que é prioridade em relação a situações como as das pontes é que o Dnit Amazonas recupere a responsabilidade por essa BR. É inconcebível a superintendência regional amazonense não ser responsável por esta rodovia, porque a maior parte dela está no Amazonas. O que a gente observa é a depredação do Dnit Amazonas em relação a vários fatores. Não é que ele não tenha profissionais competentes, pelo contrário, tem profissionais competentíssimos. Isso vem criando conflitos e quem perde é o povo amazonense que fica ser ter acesso terrestre a outros estados”, defendeu Fernando e acrescentou: “Tudo o que o GT BR-319 quer é que essas ações sejam feitas da maneira correta, dentro da legalidade, com transparência, para que tenhamos nossa BR o mais rápido possível. Se precisarem de mais audiências públicas, que façam! A população tem que ser ouvida, das margens, das comunidades, indígenas, para mostrar os anseios dela”, concluiu.

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