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Terra Indígena Jacareúba-Katawixi está há mais de um ano sem proteção

Terra Indígena Jacareúba-Katawixi está há mais de um ano sem proteção

Sem nenhuma justificativa oficial, o território que abriga indígenas isolados segue sujeito a invasões, desmatamento e até grilagem.

Texto: Comunicação OBR-319
Fotos: Acervo/Idesam e Nilmar Lage/Greenpeace Brasil

Há mais de um ano, a Terra Indígena (TI) Jacareúba-Katawixi está sem portaria de Restrição de Uso, medida que busca evitar invasões ao território que está na fase de estudos do processo de demarcação. Acontece que a situação desta TI é delicada, uma vez que se trata de uma área habitada por povos indígenas em isolamento, os Katawixi, que sofre forte pressão de desmatamento ilegal, queimadas, grilagem de terras públicas e mineração ilegal. Neste mês de janeiro, a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab) e o Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM) publicaram a nota técnica Isolados Por um Fio: Riscos Impostos aos Povos Indígenas Isolados, que elenca riscos que afetam direitos fundamentais deste e outros povos em isolamento. Desde 2021, o Observatório BR-319 vem alertando e cobrando medidas para resguardar os Katawixi.

“É flagrante a negligência do governo federal com os povos isolados da BR-319. Temos como exemplo a situação dos Katawixi, mas existem vários outros povos com o bem-estar em risco, que dependem de medidas de fiscalização e combate a desmatamento, queimadas e invasões. Mas, devido ao desmonte promovido pelo governo Bolsonaro, a situação se agravou bastante nos últimos anos, culminando, no caso dos Katawixi, na desproteção do território e na falta de respostas quanto à restituição da portaria de Restrição de Uso”, disse Fernanda Meirelles, secretária-executiva do Observatório BR-319.

A portaria de restrição de uso é o mecanismo usado para controlar a entrada de não indígenas em áreas ocupadas por povos isolados. Esse mecanismo deve ser fortalecido tecnicamente, normativamente e deve ter mais investimento financeiro para que a proteção territorial seja efetiva. Uma decisão sem visão técnica pode comprometer a segurança dos isolados e de seus territórios, como o caso da TI Jacareúba-Katawixi que não teve sua portaria de Restrição de Uso renovada. A TI está no limite do Arco do Desmatamento e cercada por atividades de alto impacto como grilagem, tráfico, grandes empreendimentos como a BR-319, BR-230, BR-364 e BR-317, as hidrelétricas no rio Madeira e Pequenas Centrais Hidrelétricas (PCH) nos afluentes da margem direita do rio Purus, além da expansão da fronteira agrícola da soja, pecuária e milho. “Neste sentido, nota-se que os riscos analisados neste estudo são apenas uma fração dos impactos aos quais os povos isolados estão expostos. Há múltiplos fatores que os satélites não identificam e que podem afetar a vida desses povos de maneira oculta. A irreversibilidade dos impactos significa o risco de extermínio desses povos”, diz a publicação.

A nota técnica Coiab e do Ipam apresenta como cinco dimensões de risco estão associadas, principalmente, com atividades ilegais que aumentam substancialmente a pressão sobre as TIs com povos indígenas isolados e são elas: jurídico-institucional (que diz respeito à demarcação do território), desmatamento ilegal, queimadas, grilagem de terras públicas e mineração ilegal.

A nota também diz que a Amazônia brasileira tem 44 territórios com confirmação da presença de povos indígenas isolados ou em estudo para confirmação, que somam, juntos, 653 quilômetros quadrados (km²), o equivalente a 62% da área de todas as terras indígenas no bioma. Destes, 34% aguardam a conclusão do processo de demarcação e grande parte dos territórios onde vivem os isolados é compartilhada com outros povos, mas há também TIs de uso exclusivo de indígenas isolados dedicadas ao seu uso e reprodução cultural. A publicação indica que 12 destes territórios estão sob risco “alto” ou “muito alto”, e destaca quatro em situação crítica: TI Ituna/Itatá, no Pará; TI Jacareúba/Katawixi, no Amazonas; TI Piripkura, em Mato Grosso; e TI Pirititi, em Roraima.

“Dada a situação de isolamento, há especificidades no processo de demarcação dos territórios ocupados por povos isolados. Em alguns casos são assinadas Portarias de Restrição de Uso que visam garantir a proteção dos isolados e de seus territórios, respeitando o princípio da precaução”, diz trecho da nota, que segue: “Por vezes esse mecanismo pode se desdobrar no estudo de identificação e delimitação de um território, mas nem sempre isso acontece. O trabalho de pesquisa é executado por equipes técnicas especializadas da Funai, e visam apontar indícios da presença desses povos em uma região específica. A renovação ou não das portarias de restrição de uso cabe à presidência do órgão indigenista federal”. Enquanto outros passos do processo de demarcação não avançam, as TIs deveriam contar integralmente com a Restrição de Uso, mas não é o que ocorre no caso da Jacareúba-Katawixi.

Medidas de proteção

Uma das autoras da nota, a pesquisadora Patricia Pinho, que é diretora adjunta de ciência do Ipam, explica que tomar medidas para a proteção do território de indígenas isolados não é uma concessão e nem trata de depender da boa vontade do governo, mas de um direito assegurado pela Constituição Federal. “Os povos indígenas isolados tentam manter a sua autonomia resistindo ao processo de colonização por meio de distanciamento da sociedade nacional e de outros povos indígenas. O Artigo 231 da Constituição Federal reconhece a autonomia desses povos em manter e fortalecer seus seus territórios e seu modo de vida. Uma medida que oficializa esse reconhecimento é o processo de regularização fundiária de um território, que se baseia no direito dos isolados permaneceram nestas áreas”, esclarece.

De acordo com a publicação, até junho de 2022, a ausência de mecanismo legal que garanta o princípio da precaução da sua segurança e de proteção do território dos Katawixi abriu precedentes para que a área seja ocupada por terceiros. “A Jacareúba-Katawixi tem 111 pedidos de Cadastro Ambiental Rural [CAR], lembrando ainda que mais de 95% do território é sobreposto por uma Unidade de Conservação [UC] federal de proteção integral”, diz trecho da nota técnica. A UC em questão é o Parque Nacional (Parna) Mapinguari, criado em 2008. A nota também revela que Terra Indígena Tenharim do Igarapé Preto, que também fica na área de influência da BR-319 e registra a presença de isolados, também está sob risco tendo 94% do seu território ocupado por registros de CAR.

Sobrevoo em Porto Velho, capital de Rondônia, na região da Amacro, em uma área com cerca de 8.000 hectares de desmatamento – a maior em 2022. Foto: Nilmar Lage/Greenpeace Brasil

Sobrevoo em Porto Velho, capital de Rondônia, na região da Amacro, em uma área com cerca de 8.000 hectares de desmatamento – a maior em 2022. Foto: Nilmar Lage/Greenpeace Brasil

Patrícia explica que, os povos indígenas isolados só estão efetivamente seguros quando o processo de demarcação dos seus territórios é concluído. “São necessários estudos, identificação e delimitação para depois ter uma declaração efetiva pelo Ministério da Justiça e, então, uma demarcação desse território. Somente quando a TI está homologada é que a gente fala que existe uma segurança institucional jurídica. Grande parte das TIs com povos indígenas isolados na Amazônia ainda não se encontram num estado de homologação e registro, o que as torna vulneráveis a invasões, desmatamento ilegal, queimadas, grilagem de terras, como, por exemplo através de grilagem por meio de um CAR fraudulento”, esclarece. Mesmo diante destas etapas do processo, a posse permanente dos territórios habitados por isolados deve ser reconhecida, independente da demarcação administrativa dessa área.

Pinho destaca que, atualmente, a TI Jacareúba-Katawixi está no eixo central da região de fronteira da expansão agrícola entre os estados de Amazonas, Acre e Rondônia, conhecida como AMACRO (sigla atribuída à região que compreende 32 municípios entre os três estados). “A nossa publicação se faz imprescindível para a próxima gestão federal sobre atentar para as politicas públicas robustas e eficientes em manter e assegurar o direito desses povos assegurados, dada relevância para proteção da floresta e sobrevivência dos povos originários, especificamente isolados”, disse Patrícia.

A nota técnica faz três recomendações: garantir os direitos indígenas fundamentais, fortalecer o caráter técnico da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e zerar as atividades ilegais nos territórios. O Observatório BR-319 procurou a Funai para saber se e quais medidas serão adotadas pela nova gestão para proteção da TI Jacareúba-Katawixi, mas não obteve resposta até a publicação desta edição.

Licenciamento da BR-319

A existência dos Katawixi é conhecida desde os anos 1970, mas só oficialmente confirmada em 2007, durante os estudos para o planejamento da construção das usinas hidrelétricas de Jirau e Santo Antônio. Na ocasião, foram encontrados não apenas vestígios da presença dele, como também servidores da Funai foram cercados por um grupo e ouviram gritos dos indígenas. Desde então, a TI esteve protegida por portarias de Restrição de Uso, com vigência de três anos, sucessivamente renovadas. A última, foi assinada em 14 de dezembro de 2018 pelo então presidente da Funai, General Franklimberg Ribeiro de Freitas, e venceu em dezembro de 2021.

A importância dos povos isolados no licenciamento ambiental da BR-319 já foi abordado pelo agora gerente de Povos Isolados da Coiab, Luiz Oliveira Neto, que também é um dos autores da nota. Ele explica que os Katawixi, provavelmente, são do povo Kawahiva, sobreviventes de diversos massacres e dispersos em pequenos grupos entre o Amazonas, Rondônia e Mato Grosso, ou de outro povo do tronco linguístico Arawá, como é o caso dos Paumari. Independente disso, eles tiveram o seu território dividido pela abertura da BR-319. “Essa divisão do território dos indígenas, por si só, é catastrófica. O grupo que vive na TI Jacareúba-Katawixi pode ser de dois ou mais povos. Eles podem tanto habitar a sudoeste do Trecho do Meio, quanto a oeste do trecho entre Humaitá e Porto Velho. Além disso, há de se considerar que essa região tem ecossistemas únicos, que são os campos amazônicos”, diz Neto. A Restrição de Uso é o único instrumento que existe para proteção destes indígenas. “Por isso, a TI Jacareúba-Katawixi está sob Restrição de Uso, para estudos, para saber qual o grupo étnico vive ali, que recursos eles precisam para a manutenção do seu modo de vida, quais áreas eles usam e, enfim, entender quais são as necessidades deles para a delimitação do território com segurança. A não renovação da portaria é um ataque à existência dos indígenas isolados”, acrescenta.

Em julho de 2022, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) emitiu a Licença Prévia para o trecho do meio da BR-319. A medida está em desacordo com recomendações feitas pelo próprio órgão e coloca em risco a segurança jurídica das obras no segmento.

Para refletir

Por Martha Fellows*
“É preciso que as pessoas entendam que é um direito desses povos viverem em sistema de isolamento, que é uma resposta à colonização. Foram as violações sistemáticas de direitos e o cerdo a essas comunidades que fizeram com que eles adotassem esse comportamento. A maior população de isolados está na Amazônia, porque foi nessa região que essas populações conseguiram não ser tão afetadas pela sociedade não indígena, mas, obviamente, sabemos que, indiretamente, elas acabam sofrendo os efeitos do desmatamento, da mineração, do fogo, que contamina rios, tira recursos e coloca a subsistência delas em risco. O direito desses indígenas à terra é assegurado por lei, mesmo quando a terra ainda não é demarcada como é o caso aí da Jacareúba-Katawixi. Eles têm direito ao usufruto do seu território, por ocuparem tradicionalmente aquela área. É um direito ancestral que garante um direito à vida, o que é um direito humano. E se é direito humano, nós não podemos retroceder, só ampliar”.
*é uma das autoras da nota técnica e coordenadora do Núcleo Indígena do Ipam

Leia a nota técnica Isolados Por um Fio: Riscos Impostos aos Povos Indígenas Isolados

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