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Hélio Villas Boas dá lição de vida sobre abelhas e tecnologia social

Hélio Villas Boas dá lição de vida sobre abelhas e tecnologia social

Parceira fundamental nas ações da AGM que envolvem produção sustentável, a engenheira agrônoma, Laís Bentes, transformou por um dia o seu meliponário em uma verdadeira sala de aula a ceu aberto, ao levar o pesquisador do INPA (Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia) especialista em abelhas, o mestre Hélio Vilas Boas para uma troca de conhecimentos sobre o tema. Além do meliponário localizado no sítio ‘Putitanga’, propriedade de Bentes, o pesquisador teve a oportunidade de visitar estruturas semelhantes de produtores de mel na comunidade de São Raimundo do Mutuca. Com apoio da AGM, todo o conhecimento do professor Vilas Boas atraiu mais de 60 pessoas por dia na sua visita a Maués, entre produtores e interessados no tema, vindos da área indígena, urbana, além de sítios e comunidades da região. Recebendo as pessoas com “saudações abelhudas”, o pesquisador compartilhou todo o amor e sabedoria que possui sobre o universo das abelhas amazônicas, com foco em pontos importantes sobre agroecologia e a cadeia produtiva das abelhas sem ferrão.

Tomando as devidas medidas de segurança, os encontros foram um sucesso e renderam ao professor Hélio Vilas Boas convites para estender sua estadia na cidade. Logo após participar do programa “Alô Produtor”, na rádio Independência, Vilas Boas concedeu esta entrevista ao Jornal Aliança, onde aborda diversos aspectos da meliponicultura na Amazônia.

 

Por Laís Bentes

 

Laís Bentes – Sua família é de agricultores? O senhor também seguiu esse caminho?

Hélio Vilas Boas – Sim. Plantávamos fibra de Juta e éramos oito filhos. Mudamos para Manaus em 1976 com minha mãe, em busca de vida melhor. Sou de Barreirinha e meu pai de Parintins. Sim, sou produtor de informações. Ultimamente, para não ser ‘casa de ferreiro, espeto de pau’, tenho abelhas também, no meliponário Urutau, no sítio de Waltinho, meu amigo desde 1984, na cidade de Iranduba.

 

LB – Qual a sua formação acadêmica e o que o levou para essa área?

HVB – Sou técnico em agropecuária pela antiga Escola Agrotécnica Federal de Manaus, hoje IFAM (Instituto Federal do Amazonas) zona leste. Em 1984, estudei no (município) Careiro Castanho, na Associação Lanteriama para o Auxílio da Amazônia, uma instituição suíça que capacitava os jovens da região em horti e fruticultura. Lá, eu tive a oportunidade de trabalhar com terra e com abelha, foi quando me apaixonei e, em 1987, fui para a Escola Agrícola. Tive a oportunidade de ir para Presidente Figueiredo, onde seu Egídio e dona Dorothy (já falecidos) me deram todo o conhecimento básico do que são as abelhas sem ferrão. Em seguida, retornei ao Careiro Castanho para ser professor da escola em que fui aluno. Fiz concurso para o INPA e, aqui em Maués, completo e comemoro a ‘maioridade’ de 18 anos de INPA.

 

LB – Qual o trabalho que você desenvolve no INPA?

HVB – Desenvolver tecnologia social. A criação de abelhas é uma tecnologia social. Engloba várias pessoas, requer conhecimento simples, pouco esforço físico, pouco dinheiro e estar a dispor de toda sociedade. Todo mundo pode ter sua caixa de abelhas. A pesquisa é em paralelo a tudo isso, a tecnologia social é o foco do meu trabalho.

 

LB – E qual a fonte desse conhecimento todo que o senhor nos passou no curso?

HVB – Eu tive a oportunidade de trabalhar com o maior pesquisador de abelhas do mundo, o doutor Warwick Kerr, aqui na Amazônia. Ele foi diretor do INPA por duas vezes. Eu e a doutora Gisleine Zilse entramos juntos no concurso do INPA em 2002 e formamos o GPA (Grupo de Pesquisa em Abelhas). Ela como pesquisadora e eu como técnico responsável. Faço o trabalho de campo, ponho em prática as informações desenvolvidas no laboratório. Todo o trabalho nosso de biologia molecular, genética, conservação e manejo foi estruturado pelo doutor Kerr. Eu desenvolvo tecnologia social através deste conhecimento.

 

LB – As abelhas sem ferrão só existem na Amazônia?

HVB – Estudos dizem que elas saíram da região amazônica e se dispersam pelo mundo desde a Pangeia (supercontinente que existiu há milhões de anos e se fragmentou para a configuração que conhecemos atualmente). Elas deixaram o grupo de vespas, do qual são originárias, para se tornarem abelhas. O Brasil é, com certeza, o local que tem o maior número de abelhas nativas do mundo. As abelhas do gênero melipona só existem no Brasil e no chamado ‘novo mundo’, do México para baixo. As com ferrão moram na África e Europa (trigona, frisomelita). Tem muita abelha sem ferrão no mundo. Mas o ideal é que se trabalhe a espécie local. Não é bom importar.

 

LB – Qual a relação das populações indígenas com a produção de mel?

HVB – Os primeiros povos que criaram abelhas foram os egípcios, que usavam o mel para mumificação. Depois disso, o povo maia no México já fazia manejo, há provas disso em Yucatán. No Brasil, os kayapó foram os primeiros a criar abelhas. Os kayapós estudaram bastante toda a abelha, ou seja, já tínhamos dos kayapós um vasto estudo da tecnologia da abelha sem ferrão. Já a abelha com ferrão foi introduzida em nossa cultura pelos jesuítas em 1832. Vieram para promover a produção de mel. O que acontece? Aí entra o branco e o negro. Católico e não católico na colonização. O jesuíta ia para a igreja, e a cor da vela era escura. No terreiro do caboclo a vela era de cera escura. A cera escura foi considerada algo profano, então trouxeram a abelha com ferrão da Europa para produção de cera. Essa abelha produzia muita cera, mas não produzia mel. Doutor Kerr foi para África pelo Governo Federal para promover a genética das abelhas com ferrão existentes no Brasil, essas europeias. Cruzaram a europeia com a africana. Estudiosos falam que isso criou um desequilíbrio. Ela realmente toma alguns espaços; 5 mil indivíduos contra uma população de 80 a 120 mil é um exército mais forte. Não é você, a natureza já põe ela ali. Elas estão espalhadas. Melhor é juntar o útil ao agradável.

 

LB – Na sua entrevista para a rádio, chegaram a perguntar se dá para ‘ficar rico’ com a produção de mel. Qual sua resposta para quem vê essa oportunidade?

HVB – O mel é um produto a mais para você. É uma atividade agregada. Veja, você é agricultor, tem a sua plantação, então precisa de um agente polinizador. Se você não tem a abelha no local dela, sua cadeia não está fechada, está aberta. Você depende do fator natureza para polinizar. Se você coloca as abelhas lá, elas vão polinizar, vai ter um aumento de frutos. No caso da Laís (Bentes), por exemplo, a meliponicultura ajuda o fruto do guaraná, além da produção do mel. São atividades agregadas. A tecnologia social engloba a comunidade, as pessoas e o respeito à grandiosidade da natureza dentro dessa cadeia. Se você produz a mandioca, o guaraná e outras frutas, além de polinizar, a abelha será mais um produto que você terá como fonte de renda. Quando chega o verão, todo mundo quer mel. Na entressafra começam outros picos. É toda uma cadeia muito interessante. O meliponicultor deve pensar na natureza, na polinização primeiro. Mel é consequência do trabalho de polinização. E não é só mel. Você pode vender colônia, disco, rainha, pode produzir as caixas.

 

LB – Onde essas atividades podem ser desenvolvidas?

HVB – No Brasil todo. Desde que tenha autorização, qualquer pessoa pode produzir mel. Já dei esse curso em São Paulo, Bahia, Pará, Roraima.

 

LB – O que o senhor percebeu ser a informação que mais havia necessidade de ser passada aqui? O que produtores que querem entrar de cabeça na área precisam saber?

HVB – Divisão de caixa. Medo de dividir caixa, acham que vão matar (as abelhas). A outra: transferência de caixa, ou de tronco para caixa. Ou, por exemplo, a caixa fica apodrecida, pois é de madeira, deteriora. Então, como tirar a caixa daqui pra lá? Tudo isso é bom saber. Um pouco de biologia, saber a função do macho, a função da fêmea, da operária, da rainha, da princesa ou rainha virgem. Todos esses indivíduos dentro da colmeia, o que cada uma representa. Se a pessoa começa com esse conhecimento, a coisa deslancha e vai longe. Outro dia falei pra minha mãe: “quando eu me aposentar será que volto pro interior?”, e a resposta dela foi “por que não voltar?”. Ao falar que era por já termos plantado muita coisa por lá, ela me surpreendeu ao responder “plantou mesmo, mas plantou sem conhecimento”. E é a mais pura verdade. Antigamente eu não tinha conhecimento. Hoje, quer fazer plantio de guaraná, graviola, qualquer criação? Estuda um pouquinho. Não precisa ir à faculdade, é só um pouquinho de verdade. Hoje temos a internet. Tecnologia social. Isso é o bom do GPA. Hoje, ainda existe extrativismo. Mas em vez de o caboclo cortar 10 ou 20 árvores para colher o mel, ele tira uma, isso quando já não tem na sua propriedade uma caixinha de abelha.  Quem tem abelha também vai pensar duas vezes antes de colocar agrotóxico na sua propriedade. Não somos contra agrotóxico, desde que usado corretamente. Nós usamos agrotóxicos em nosso corpo, nós somos parte da natureza, temos vermes e, às vezes, tomamos medicamentos agressivos, mas na proporção e no momento certo.

 

LB – Como foi viabilizar essa viagem para trazer todo esse conhecimento técnico aos produtores de Maués?

HVB – O INPA é um instituto de Pesquisa. A gente participa de vários editais: da Fapeam (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas), Finep (Financiadora de Estudos e Projetos), Fundo Amazônia, para citar alguns. Além disso, o INPA financia pesquisa e outros órgãos financiam os projetos. Desenvolvemos projetos em determinadas áreas, como, por exemplo, pelo Rio Solimões. É desenvolvido não só aquele trabalho de ensinar as pessoas, mas também de conhecer as abelhas, pesquisar ainda mais, identificar, todo um guarda-chuva de itens. Tenho vários cursos, estava em Iranduba dando um deles, na Cidade das Abelhas. Apareceram lá o Nico e a Laís com o intuito de aprender, buscar conhecimento. Surgiu então a oportunidade de este ano saber mais! Temos aqui 80 caixas de abelha, será que está tudo certo? É sempre bom mais de um olho para saber como está indo a coisa. O INPA não está funcionando. Conversamos com a doutora Gislene, se era possível dar o curso. Pensamos em um protocolo de dar o curso num local aberto, com espaçamento, máscara, orientação de lavar as mãos. Decidi vir e vim pra cá. Aí o Eric Brosler descobriu que eu vinha e já marcou outro curso com a Aliança Guaraná de Maués e então seguimos para a Comunidade São Raimundo do Mutuca.

 

LB – Como surgiu a sua paixão por abelhas?

HVB – Eu não era técnico em abelhas, era técnico do INPA. Comecei com abelha em 1998, no Careiro Castanho, quando a dona Neusa Helena me disse: “você tem que aprender a criar abelhas e divulgar as tecnologias”. Ela me convenceu a ir para Presidente Figueiredo. Juntei uma turma de 15 a 20 alunos e participei. Na volta, comecei a trabalhar. Dona Glória me indicou ao doutor Kerr e hoje estou aqui em Maués. Um verdadeiro presente de aniversário de 18 anos no instituto. Gosto de abelhas, gosto de estar com as pessoas que querem informações e disseminar uma ideia legal. Quis fazer agronomia e não consegui. Depois que eu entrei no INPA, o doutor Kerr me falou para não parar de estudar, me incentivou e sugeriu a fazer biologia e depois mestrado em agricultura na A.T.U.

 

LB – Quais profissionais o senhor acha que devem se aproximar dessa sua área?

HVB – Não seria um profissional, mas as instituições. A instituição é agrônoma e se ela está aqui, vai fazer o que ela pode para o Município. Se a prefeitura não quiser abraçar essa ideia, vai ficar por isso mesmo. Tem que haver o papel da instituição. A prefeitura, o INPA, o IDAM, seriam as pessoas certas. Eu conheço pessoas muito boas em mel por causa do IDAM e muitas vezes nem são de lá, mas prestam serviço. A instituição tem que se aproximar das pessoas. O INPA formula as pesquisas. Quem descobriu a banana que chegou? A Embrapa, o IDAM. Desenvolver a Amazônia para um mundo melhor passa por tecnologia, a tecnologia social. Não são as pessoas sozinhas, ou o profissional. É a instituição. Ela que vai fazer a política pública daquele negócio que vai investir, incluindo a iniciativa privada, na tecnologia social para aquele local, com aquelas culturas. A Laís Bentes, por exemplo, fez o papel da instituição me trazendo até aqui e o Eric e a AGM descobriram que eu vinha e acabaram me levando para o Mutuca. Mas isso não é a função deles, é uma função do Estado.

 

LB – Qual receita com mel que você mais gosta?

HVB – Bolo de mel da Ilha Michiles, da abelha canudo, muito suave, muito gostoso. Mas tem o hidromel que eu adoro, um fermentado de mel. A cerveja do mel é muito boa. O mel na salada também é bom. Pimenta com mel. Tem o mel da Tetragona para culinária, que é um tesouro inigualável entre os chefs.

 

LB – Fale um pouco das suas impressões sobre o Mutuca?

HVB – Mutuca o bicho? Tomei ferroada de Mutuca no Putitanga (sítio de Laís Bentes)! No Mutuca (comunidade), nenhuma mutuca me mordeu. O senhor Edson é uma pessoa única, ímpar, um apaixonado por abelhas. No Mutuca, nós vimos que a crítica para ser construtiva deve antes ser destrutiva. Isso serve para criarmos um pensamento totalmente novo a respeito de alguma coisa. Isso aqui está errado e você estava gostando, tem que destruir uma coisa e formular outra. Isso é ótimo. Abre caminho para pensar. Certa vez, um ‘cabra’ chegou em um evento do IFAM e disse que estava produzindo uma ‘barbaridade’ de mel. Aí ele aumentou a caixa para 29x29cm. Eu recomendo, no máximo, 21cm interno. Quando fomos ver a caixa dele, que dizia que estavam boas, na verdade elas não estavam. Fomos abrindo e tive que provar a ele que a caixa grande não é viável para a abelha. Tem que ir de pouco. Então esse rapaz terá que destruir esse pensamento para construir outro que será melhor para ele e para as abelhas dele. Isso é ótimo. É necessário muitas vezes destruir um pensamento e construir outro. Caixa menor é melhor. A abelha precisa de casa bonita, confortável, do jeito que ela precisa e que ela quer. Essa troca que proporciona o aprendizado é o que há de mais gratificante.

 

LB – Qual mensagem você gostaria de deixar ao público do Jornal Aliança?

HVB – Eu acredito que tudo seja importante em termos de agricultura. Trabalhar, produzir seu próprio alimento é muito gratificante. Fornecer essas informações a quem tem capacidade de trabalhar no campo é muito bom. A pessoa precisa ter afinidade. Ser agricultor, ter criação é muito interessante, mas é preciso gostar, ter vocação. Eu gosto muito do termo ‘livre arbítrio’, você faz o que quer porque quer. Ninguém está te obrigando. Fazer o que se gosta, o que se quer, desde que eu não machuque meu parceiro.

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